Ao visitar a 3ª exposição intitulada RESENDE, Sinais do Modernismo no Porto – anos 50, na Fundação Dr. António Cupertino de Miranda, um conjunto de excelentes e necessárias exposições organizadas e comentadas pelo professor Bernardo Pinto de Almeida, encontrei mais um quadro em que surge a ponte Luiz I, do mestre Júlio Resende.
Estas exposições - numa feliz e justa iniciativa da Fundação - realizam-se num momento em que sobre os pintores do Porto, - alguns deles recentemente desaparecidos [1] e que no século XX construíram e lutaram pela Arte Moderna, - caiu sobre eles, desde que morreram, um estranhíssimo silêncio como diz Eugénio de Andrade sobre o poeta Pedro Homem de Mello.
E assim, perante o quadro de Júlio Resende …voltei até á ponte sobre o Douro, onde, vendo lá em baixo as aguas barrentas do rio fugir arrastadas pela rapidez da corrente, me esqueci por largo tempo. Oh a natureza e a arte, as grandes fontes de onde jorram para as nossas almas cançadas caudaes de emoções consoladoras! [2]
Um apontamento sobre o quadro de Júlio Resende
A única regra que tenho é a de que começo com o instinto. Júlio Resende [3]
fig. 1 - Júlio Resende. Ribeira, 1952. Óleo s/ tela 73 x 92 cm. Col. Particular. Em exibição na Exposição Resende, Fundação Dr. António Cupertino de Miranda Porto. Fotografia de José Eduardo Cunha no catálogo.
Resende pintou nos inícios dos anos 50 este quadro [4] da Ribeira que tão bem conhecia e frequentava e cuja gente tanto amava, Gente que deixa em nós a marca granítica da sua alma rude e transparente, mostrando aquilo que é, exactamente como a terra que lhe foi berço. [5]
O quadro, um pouco inquietante pelo sentido de solidez que transparece nos seus contornos acentuados, é uma pintura marcadamente expressionista (Eu sou expressionista? Sei lá. É o que dizem [6] ) numa vaga lembrança de Rouault [7] que nos provoca uma estranha sedução, pelo modo como é retratada uma imagem que nos é familiar, que atinge a nossa memória mais íntima, e os refúgios mais secretos da nossa alma de portuenses... onde têm raiz todas essas árvores de maravilha / cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos. [8]
No primeiro plano três vendedeiras da Ribeira do Porto, mulheres envelhecidas muito antes de serem velhas, [9] duas sentadas junto das suas bancas e uma terceira de pé entre as duas, retratadas numa estilização entre o figurativo e o abstracto que Resende utilizará nesta fase e que marcará (quase) toda a sua pintura.fig.2 – Detalhe da imagem anterior.
Ao fundo a Ribeira de Gaia pintada numa luz crepuscular quando a noite vem, em que o… gigantesco desenho da ponte se lhe debuxava agora à esquerda, com o seu arco imenso meio afogado no nevoeiro, [10] sobre a ponte o convento da Serra do Pilar. fig. 3 – Detalhe da fig. 1.
À direita sob um renque de árvores sem folhas, o casario de Gaia pendurado sobre o Douro, que aliás, apenas se adivinha. fig. 4 – Detalhe da fig. 1.
Todo o quadro é tratado de uma forma a expressar as qualidades da pintura, com cores de terra onde se abrem brancos e azuis, em pinceladas largas e espessas, ou no dizer do próprio artista o acontecimento é mesmo na superfície da tela. [11]
Assim resta perguntar com o poeta:
Que linguagem é a do espaço? O que é o sal da sombra? [12]
[1] Fernando Lanhas, Nadir Afonso, Júlio Resende, Ângelo de Sousa, …
[2] Ribeiro Arthur A Galeria de S. Lazaro Porto, 21 de outubro de 1891 in Arte e Artistas Contemporâneos. pag.187
[3] Entrevista a Carlos Vaz Marques Diálogo V, in Catálogo da exposição retrospetiva de Júlio Resende. Sociedade Nacional de Belas Artes Lisboa 2006.
[4] A Ribeira de Resende culminará no painel cerâmico Ribeira Negra concebido em 1984, e inaugurado em 1987, que nas palavras de Eugénio de Andrade é o magnificente historial da miséria e da grandeza da população ribeirinha do Porto. (ver nota [9])
[5] Júlio Resende, Pulsar do Granito, Ribeira Negra. Porto: Lugar do Desenho, Fundação Júlio Resende, 1998. (p.3-5).
[6] Júlio Resende. Entrevista a Anabela Mota Ribeiro Diário de Notícias em 1999.
[7] Georges Henri Rouault (1871-1958) cuja pintura Resende deverá ter conhecido na sua estadia em Paris nos anos do pós-guerra.
[8] Álvaro de Campos, Dois Excertos de Odes (Fins de duas odes, naturalmente) 30-6-1914, [441] in Fernando Pessoa, Obra Poética, Volume Único, Rio de Janeiro, GB, Companhia Aguilar Editora, 2.ª edição, 1965. (pág.312).
[9] Eugénio de Andrade A Cidade de Garrett, Fundação Eugénio de Andrade, Porto 1993.
[10] José Régio Evasão, A Velha casa I Uma Gota de Sangue, 1ª edição, Lisboa, Editorial Inquérito, 1945, e 2ª edição revista, Lisboa, Portugália Editora, 1961.
[11] Júlio Resende.Entrevista a Carlos Vaz Marques Diálogo IV Catálogo da exposição retrospetiva de Júlio Resende. Sociedade Nacional de Belas Artes Lisboa 2006.
[12] António Ramos Rosa a rosa esquerda. Colecção Caminho da Poesia, Editorial Caminho,1991.