terça-feira, 23 de abril de 2024

postal do Porto

 

Um postal do Porto para quem frequent(a)ou as Belas Artes


Figura 1- Postal. Porto-Avenida Rodrigues de Freitas c. de 1925.

 

A Avenida Rodrigues de Freitas (antiga estrada ou rua do Reimão, depois Rua de S. Lázaro e ainda rua do Heroísmo) desde 1910 homenageando José Joaquim Rodrigues de Freitas (1840-1896), natural do Porto, formado em Engenharia, foi professor, escritor e o primeiro deputado republicano ao Parlamento.

Na Carta Topographica da Cidade do Porto de Telles Ferreira de 1892 estão assinalados alguns comentários a este postal.



Figura 2 - Pormenor da "Carta Topographica da Cidade do Porto que foi mandada levantar por ordem da Camara Municipal da maesma Cidade referida ao anno de 1892. Dirigida e levantada por Augusto Gerardo Telles Ferreira General de Brigada Reformado coadjuvado pelo Capitão de Cavalaria Fernando da Costa Maya e mais empregados.

 

 Ao centro da Avenida ainda sem árvores circula à esquerda o eléctrico modelo 1925 da Linha 12 Praça da Liberdade-Campanhã (via Praça da Batalha).

A Linha 12 foi inaugurada em 1875, para permitir a circulação do Americano, transporte sobre carris puxado por mulas, e destinava-se a ligar a Estação de Pinheiro de Campanhã, então inaugurada, com o centro da cidade. A tracção animal foi extinta em 1904. 

O carro eléctico circula à esquerda (no sentido poente-nascente), o que permite datar o postal como anterior a 1928 (quando em 14 de Abril foi aprovado o Código da Estrada, publicado em anexo ao Decreto n.º 15.536, que entrou imediatamente em vigor.

Assim o postal deve ser anterior a 1928.

 

À direita da imagem o muro que limitava o jardim (com o n.º 2 na planta) da autoria do arquitecto paisagista belga, Florent Claes, do Palacete (n.º 3 da planta) mandado construir por António Ribeiro Fernandes Forbes (1791-1862).

Este palacete foi adquirido por José Teixeira da Silva Braga (1811-1890) e o seu filho José Braga Júnior, Vice-cônsul do Brasil no Porto, tornando-se conhecido como o Palacete Braguinha.

Após a morte do “Braguinha” o palacete foi ocupado em 1917 pelo Instituto Superior de Comércio do Porto e em 26 de Junho de 1933 pelo Decreto-lei n.º 23 103 de 9 de Outubro de 1933, foi destinado à Escola de Belas Artes: “Artigo 5.º O edifício onde funciona actualmente o Instituto Superior de Comércio do Pôrto ficará destinado para instalação da Escola Superior de Belas Artes do Pôrto.”

Em 3 de Fevereiro de 1939 a Escola de Belas Artes toma posse do edifício. (Hoje Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Sempre me perguntei porque não conservaram o consagrado e histórico nome de Escola de Belas Artes acrescentando da Universidade do Porto??!!)

 

Na empena do edifício vizinho do palacete Braguinha (n.º 1 da planta) está afixado um cartaz de um dos muitos filmes adaptando a obra de Victor Hugo Os Miseráveis. Este longo filme mudo (com a duração de 6 horas e 30 minutos), foi realizado em 1925 por Henri Fescourt (1880-1966) e contava no seu elenco com Gabriel Gabrio (1887-1946) no papel de Jean Valjean, Jean Toulout (1887-1962) Javert, Sandra Milowanoff (1892-1957) Fantine, Renée Carl (1875-1954) Cosette e Suzanne Nivette (1894-1995) Eponine.

 


Figura 3 - Pormenor do Postal rodado a 90º graus.


Figura 4 - Álbum de apresentação do filme de Henri Fescourt (1880-1966) Les Misérables, 1925 Société des Cinéromans, Pathé Consortium Cinéma.

 


 Figura 5 -Uma página do Álbum

 

 

 



Figura 6 - A empena que se mantém na actualidade destacada em Google Earth.

[Por outros pormenores da fotografia suponho que se trata deste filme e não de um outro realizado em 1934 e dirigido por Raymond Bernard (1891-1977), e que foi exibido no cinema Trindade em 1935.]


Figura 7 - Cartaz do filme de 1935

 



Figura 8 - Publicidade da empresa Filmes Castello Lopes SARL na Revista Invicta Cine n.º 228 de 11 de Março 1935 ano XII (pág. 19).

 

 À esquerda o Palacete do Visconde da Gândara (n.º 4 na planta), António Correia de Magalhães Ribeiro (1835-?). O título foi-lhe concedido por Decreto de D. Luiz I Luís I de 8 de Julho de 1886.

Em 28 Junho de 1890 o Visconde de Gândara apresenta na Câmara Municipal as plantas da casa que pretende construir no gaveto da Rua de S. Lázaro e Rua do Visconde Bóbeda e em 1 Agosto, solicita a aprovação dos alçados da mesma casa.


Em 1948 o prédio é adquirido pela Associação dos Industriais de Ourivesaria e Relojoaria do Norte fundada em 1943, que aí se mantém.

 


Figura 9 - O palacete do Visconde de Gândara (Associação dos Industriais de Ourivesaria e Relojoaria do Norte) 1958. foto Teófilo Rego. AHMP.

 

Segue-se um conjunto de edifícios, onde no penúltimo se instalará em 1956 o Instituto do Serviço Social. (n.º 5 na planta).

 

O Reimão

Na esquina da Avenida com a Rua do Barão de S. Cosme (n.º 6 na planta) situava-se o Hotel do Reimão, no edifício em se havia instalado no século XIX, o famoso Restaurante Reimão que Camilo Castelo Branco recorda em “O Cancioneiro Alegre”.

Diz Camillo:

“Evaristo Basto *, primeiro folhetinista do seu tempo, Girão **, o actual visconde de Benalcanfôr e eu tínhamos dias assignalados, ha 24 annos, de jantar no Reimão, na taberna de um maneta que levou d'este mundo o segredo da boa pescada com cebolas.” [1]

 [*Evaristo José d’Araújo Basto (1821-1865) **António Luís Ferreira Girão (1823-1876)]

 E nos anos 80 do século XIX o Reimão é referido pelo “Almanach do Trinta”, uma publicação republicana e anticlerical dirigida por Cecílio de Sousa (1842-1897), num escrito intitulado “O Porto ao correr do pelo”, entre referências a cafés e botequins do Porto refere o Reimão da seguinte forma:

 “Ninguem tem como elle o melhor verdasco. Se não, que o diga o Pinto, o Vasconcellos, o Wanymell, o Sanhudo *, o Cruz, e toda a boa rapaziada que dão alma, vida e coração por uma pratalhada de tripas e competente enfeite aos quarteirões do maduro. Que bellas tardes de junho à sombra do arvoredo do quintal com a Micas a berrar – quer berde?[2]

[*Sebastião (Sampaio de Souza) Sanhudo (1851-1901)]



Figura 10 -  Jornal do Porto n.º 193 XXXII Anno 1890 de Sábado 16 de Agosto (pág. 2)

 

Em 1890 refere o “Jornal do Porto” “Restaurante Reimão - este conhecidíssimo restaurante acha se situado n’um edifício magnífico, expressamente construído para esse fim. Os aposentos, assim como o serviço do hotel, são dos mais apreciáveis e os preços muiyo módicos. É este, sem duvida, um dos estabelecimentos que mais prima na escolha dos seus vinho, sortindo se sempre nas regiões mais afamadas e assim se explicam e justificam os créditos que gosa no Porto e em grande parte do paiz o antigo Reimão” [3]

E no ano seguinte também o jornal “O Primeiro de Janeiro” refere:

“Inaugurado a 1 de Março de 1891 o Granda Hotel Reimão, estabelecido num magnífico prédio ultimamente construído em S. Lázaro” [4]

 

 

 

 

 



[1] Camillo Castelo Branco Cancioneiro Alegre de Poetas Portuguezes e Brazileiros, Segunda edição, seguida dos Críticos do Cancioneiro. Volume I.  Livraria Internacional de Ernesto Chardron Casa editora. Lugan & Genelioux, Successores. Porto 1887. (pág. 98 e 99).

[2] Almanach do Trinta para 1884. O Porto ao correr do pelo. Quinto anno de publicação. Typographia Popular Rua dos Mouros 41, 1º Lisboa 1882. (pág. 104). BNP.

[3] Jornal do Porto n.º 193 XXXII Anno 1890 de Sábado 16 de Agosto (pág. 2)

[4] O Primeiro de Janeiro 1 de Março de 1891 citado por Guido de Montrey Porto 2. Edição do autor Porto 2008 (pág. 590)

quarta-feira, 17 de abril de 2024

poemas recuperados 20

 


Henri Matisse (1869-1954), “iI faisoit chaut, et le somme coulant…” Litografia 26 x 15,5 cm. Plate 28. Florilège des Amours de Pierre Ronsard (1524-1585), Albert Skira Paris 1948. (pág.28).


bebendo do teu corpo a nascente

“E por vezes por vezes ah por vezes

num segundo se evolam tantos anos.”   David Mourão-Ferreira *

 

Com as mãos sempre compondo

fluidas gotas frescas perfumadas

vestindo o teu corpo em redondo

de jangadas e ondas encantadas.


Jardim perfeito sem flores alheias

que brota suave do afã nas terras

espraiando no encanto das ideias

o indizível muro onde te encerras.

 

Por vezes eu te queria verão feliz

queimando com gestos de um dia

bebendo do teu corpo a nascente.

 

Era tempo em que só o desejo diz

onde e como uma paixão se inicia

erótica luta de um abraço ardente.

 

*David Mourão-Ferreira (1927-1996). “E por vezes” in “Matura idade” (1966-1972). Arcádia, Lisboa, 1973

segunda-feira, 15 de abril de 2024

poemas recuperados 19

 

Hannah Höch (1889-1978). Coupé au couteau de cuisine – Dada à travers la dernière époque culturelle allemande de la bière de Weimar. 1919. Técnica mista 114 × 90 cm. Nationalgalerie, Staatliche Museen, Berlin.

máquinas de comunicação

 “Pour le journaliste, tout ce qui est probable est vrai.” Honoré de Balzac*

 

Mil metrónomos e manómetros em batráquio matraquear

hiperbólicas máquinas carapaças malévolas nos ouvidos

tique taques e teclados de mecânicos restolhos a triturar

proféticos palimpsestos ressoando nos ecléticos perigos.

 

Aracnídeas ideias misantrópicas tecendo veladas intrigas

impiedosa e retocada maquinação na vida transformando

brotando as perdidas mentiras entre as peças prometidas

salteadores de onomatopeias pelas palavras comichando.

                                                    

Traquejos e metralhas ribombam problemáticas tentativas 

acutilantes vapores que emitem profundos ásperos danos

reciprocas rodas à dentada se vão mordendo porque vivas.

 

Os ebúrneos trituradores perversos, vigorosos, meteóricos

em paradigmáticos colóquios e luxúria das leis harmónicas

criam hediondos periódicos frutos de narrativas metafóricas.

 

 *Honoré de Balzac (1799-1850). Monographie de la Presse Parisienne par M. H. de Balzac  Axiome Bureau Central des Publications Nouvelles. Paris 1842. (pág.78). BnF.

 

 


domingo, 14 de abril de 2024

poemas recuperados 18

 

Francois Chauveau(1613-1676). L'aigle et le hibou. Illustration de Fables de Jean de La Fontaine (1621-95). Edition de 1728. 

exilado em existir

Le soleil plaît à l’aigle et blesse les hiboux. Abée Le Monnier *

 

No volúvel vaivém que toda a vida tem

em fortes gritos ou quando só murmura,

um risonho futuro me adivinhou alguém

em vibrantes tons de glória e formosura.

           

Entusiasmo que tombou em indiferença

mudando a viva vida em tempo perdido

estando ausente em qualquer presença

olhando o futuro como passado repetido.

 

Quis planar ao sol como águia triunfante

em altos voos os mais ousados atrevidos

na vã vertigem de dominar todo o espaço.

 

Mas como coruja que só em voo atrofiante

rasando por lugares sombrios escondidos,

exilado em existir vivo o dia passo-a-passo.

 

*Inscrição atribuída a abée (Guillaume Antoine) Le Monnier (1723-1797), no pedestal do busto de Denis Diderot (1713-1784) de Jean-Antoine Houdon (1741-1828) de 1773.

A inscrição completa: “Il eut de grands amis et de petits jaloux;/ Le soleil plaît à l'aigle et blesse les hiboux.” [Ele teve grandes amigos e pequenos invejosos/ o sol agrada à águia e magoa as corujas]

segunda-feira, 8 de abril de 2024

poemas recuperados 17

 


Henri-Edmond Cross (Henri-Edmond-Joseph Delacroix) (1856-1910). La plage de saint-Clair 1896 óleo s/tela 54,5 x 65,4 cm. Museu Barberini Postdam Alemanha.

Je cherche l’or du temps

“…Je cherche l'or du temps, et tu ne comprends pas

Je cherche l'or du temps, et la beauté des choses…”

Charles Dumont *


Passar horas quebradas de ternura

nessa praia mão-cheia de rochedos

flutua nas areias um tempo de ouro

colhendo ávidos sopros nos cabelos

 

Essa árvore como mastro abanado

por um vento de carinho trabalhado

 

No vazio silêncio só de luz e sombra

em tarde sábia perfeita e de ventura

respirar em baços traços escondidos

precoce recordar a instável aventura

 

Tudo enfim que nos ajude a encantar

deliciosos ares que mareiam no lugar

 

Lugar que sempre n’alma permanece

guardando funda marca reconhecida

os riscos que qualquer um escolherá

memória em que sabemos fazer vida

 

História é só cinza e sonho passado

pegada dum corpo em sofá cansado.

 

*Charles Dumont (n.1929). Canção Je cherche l’or du temps do LP Pathé 1975 França.


sábado, 6 de abril de 2024

poemas recuperados 16

 




Gustave Doré (1832-1883), les Océanides, 1860/69. Óleo s/tela 127 x 185,5 cm. Col. particular.

destino perdido

“Solo un sussurro

che è la voce del mare fatta ricordo” Cesare Pavese *

 

Saber que o bom o melhor o excelente

sempre se gasta e morre ou apodrece

saber que o raro a maravilha o sublime

rapidamente como fumo se desvanece

 

Dilacerado por tanta inquieta desilusão

aos gritos que no mar provocam ondas

cintila no corpo essa satânica vibração

como luz que se esvai criando sombras

 

Aquelas ninfas que nos foram negando

as brandas águas e brisas passageiras

nesse escondido rochedo desaparecido

 

como a cristalina filigrana que entoando

os sedutores cantos as sensuais sereias

foram presságios do meu destino perdido.

 

* “Só um sussurro / Que é a voz do mar feita saudade”

Cesare Pavese (1908-1950). Mattino in Lavorare stanca, 1936. in  Poesie di Cesare Pavese. Arnoldo Mondadori1966 (pág. 41).

 


segunda-feira, 1 de abril de 2024

poemas recuperados 15


Gaspar David Friedrich (1774-1840), caminhante sobre um mar de névoa c.1817. Óleo s/tela 98 x74 cm. Hamburger Kunsthalle.


preso ao peso da idade

De onde vem a vagabunda, profunda e podre tristeza

que floresce em mim e não cresce em mais ninguém?

A doentia dúvida que me destrói, a estranha incerteza,

que não se sabe porquê, como se forma e d’onde vem.

 

Será da infância onde não havia ainda tantos enganos?

havia melhor tempo, havia outro espaço, havia mais luz.

Tempos sem amarguras que não estavam envenenados

aos quais o desejo a vontade de voltar ainda me conduz?

 

Onde se diluiu o descuidado entusiasmo com que traçava

lúcido futuro naquele amplo acontecer - com que energia?

Porque sinto agora este cansaço preso ao peso da idade?

 

Perdidas estão aquelas lutas solidárias em que acreditava

poder criar com entusiasmo e alegria tudo o que perseguia,


com essa ávida vontade de me ir construindo em liberdade!

terça-feira, 26 de março de 2024

poemas recuperados 14

 


Paul Klee (1879-1940). New harmony 1936. Óleo s/tela 93,7 x 66,4 cm. Solomon R. Guggenheim Museum, New York.

só com sol e sombra

 Ao querer que o planeta azul fique mais verde

somar ao verde a luz do sol criando castanho

a cor da terra e dos esguios troncos da floresta

para se recriar os justos equilíbrios de antanho.

 

Ouvir a voz na água, nos bosques e nos prados

beber a névoa que se esparsa de tanta maneira

pisar arcanos e crespos caminhos empedrados

praias de água terra e espuma unidas pela areia.

 

Tudo o que nasce, cresce, morre e por fim acaba.

se move, flui, voa, corre, sopra, nunca mais torna

correm rios, voam nuvens, toda a floresta suspira.

 

Molhada é a terra ao caírem frias gotas de geada

se tudo se vai, nada se perde, tudo se transforma

só com o cantar do sol toda a terra por fim respira.

terça-feira, 19 de março de 2024

poemas recuperados 13

 



Imagem não identificada possivelmente de Abraham Bosse (1604-1676)?


De seguro apenas cada escolha que errei

 “Cubramos, ó silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto da nossa Imperfeição.” Fernando Pessoa*

 

Nesse estendido lençol de cheiro a terra

estremece como sonho aéreo inatingível

água madrinha em areais de cor dourada

nasce ardente ardor fogo febril inevitável

 

Os cantares crispados das ocultas feridas

de presentes ao sol e à murta indiferentes

como barco ébrio e aventuras não vividas

desgovernado pelos longes transparentes

 

As mãos afanosas com sensual brandura

nesse amor passageiro de encanto breve

sempre a escorrer as vindimas da ternura

 

Sinuosos quelhos por onde sempre andei

tornando tão esparso o que neles percorri

de seguro apenas cada escolha que errei.

 

*Fernando Pessoa, Floresta do Alheamento in Obra Poética, Companhia Aguilar Editora, Rio de Janeiro 1965. (pág.439).